quinta-feira, 3 de março de 2011

noite

A rua lotada de estudantes, o final da tarde, o som das vozes gritando e a polícia ali ao lado, fazendo da cena algo típico. A manifestação prosseguia mas algo em mim me puxava para outros cantos. Os jovens andando na mesma toada, unidos em suas crenças enquanto eu caminhava só...
- Olha que gostosa. Imagina essa aí na minha cama- o cara a minha esquerda andava arritmado olhando para as bundas, pouco se importando com aqueles gritos, cartazes, como se no mundo só existisse as tais bundas. Ignorei meio cansado, levemente envergonhado. Pensava sobre o amor e a paixão, sobre o sexo de energias e sobre os corpos... a cena não vivida, aqueles flashes criados por mim iam e voltavam. Me dava arrepios.

- Po, vamos lá pra frente. A gente tem que tá na hora do quebra pau, é necessário para fortalecer a nossa conjuntura política. (foi qualquer coisa assim, pra mim foi a desculpa para perder o passo e sumir na multidão).

Começei a vaguear entre os corpos uníssonos, sem muita intenção de nada. Sentia- me suavemente só, reconfortado por aquela pontinha de tristeza e cansaço. Fui na direção do metrô. Hoje era dia de voltar cedo pra casa, ler um pouquinho e dormir como há muito tempo eu não durmo. Pensei... e nesse segundo, uma figura apareceu na minha frente, como num salto.

- Nossa, que cara é essa? Faz tempo que a gente não se ve, hein... o que há contigo?

Me sentindo atropelado, respondi qualquer coisa e olhei para o homem que se postava a minha frente. Reconheci na hora, o Paulo, fazia teatro comigo... pareceia eletrizado, tão longe daquelas pessoas quanto eu, mas no outro oposto.

Andamos um pouco como gauches, ignorando a multidão e tudo que acontecia. Fui saindo devagarinho, imperceptivelmente, de mim mesmo. Pouco a pouco, fui me abandonando, me entregando ao acaso.

- Vai voltar pra faculdade?
- Não, to indo pra casa mesmo...
- Sério? Vamo lá, não tem problema, primeira quinta-feira do ano, deve tá loco.
A festinha acontecia toda quinta-feira. Toda. E eu ia em todas. Até então. Cerveja, som, calor, meninas bonitas... mas agora me sentia descompassado disso tudo. Não, não iria hoje.
- Acho que não mesmo. To cansado e amanhã vou ter que acordar cedo, fazer várias coisas.
- Ahhh não vem com essa história. Vamo lá comigo.
- Você veio pra cá sozinho?
- Não, com uns amigos... mas eles se perderam e tals.

Nesse momento, ainda me mantinha um pouco comigo. Paulo falava rápido, misterioso. Quase como se ele realmente tivesse caído ali, naquela esquina, naquele segundo e como se meu encontro com ele fosse a deixa para ser sugado pela noite. Enquanto ele desabalava em histórias absurdas, indagações mil, fui esquecendo de tudo que tinha acontecido até então, de todos aqueles pensamentos e tristeza profunda. Todas essas coisas desapareceram, ficando apenas uma marca de quentura. Incomodava um pouquinho, mas não conseguia lembrar porquê.

Os dois sozinhos no ponto de ônibus.
- Vamo lá, tenho só que pegar uma coisa em casa lá do lado da USP, depois vamos juntos.

Estava dentro do ônibus. Ele sentado no banco da frente, quieto pela primeira vez. Chovia rios de água, começo da noite, o busão lotado. Tava um clima estranho. De vez em quando trocávamos umas palavras, mas só para atestar a tensão. Culpava ele por estar ali. Enquanto o onibus andava, não entendia direito o que me havia feito entrar.
-A gente desce no próximo.
Andamos ainda na rua, quietos, sem guarda-chuva, desacostumados com a presença um do outro. As gotas caiam e os passos apressavam.

-Bem vindo a minha república.- Umas 10 pessoas espalhadas pelo chão de madeira do apartamento, completamente jogadas. As janelas estavam todas fechadas e uma fumaça familiar tomava conta do ambiente. Todos se interromperam para nos olhar. Uma menina quase bonita num sofá. Seus olhos me puxavam...

Meu amigo ( ou meu colega provisório, qualquer coisa assim) já sentado entre aquelas pessoas, conversando com a menina. O baseado rodando, sentei também e resolvi esquecer o desconforto. Mil conversas absurdas. Me senti um comentarista de futebol, perpassando sobre temas como se desfilasse com a língua.

De vez em quando, meus olhos se viravam rápido para Paulo e ela. Numa dessas, Paulo me olhava também. Provocava, quieto, parado. Olhando sem palavras e revelando pela primeira vez o que o tinha feito me trazer aqui.

Um puxão, irrecusável. O bafo quente de duas bocas que se encostavam e se abriram por um segundo. Entrei. Sensações alternadas. Fiquei uma meia hora entre aqueles corpos, me sentia um convidado especial, sem entender nada, apenas aceitando tudo como um turista que experimenta de todas as comidas.

Dali por diante, tenho apenas algumas imagens. Eu, em um carro cheio de gente, o motorista bêbado e meio perdido, o vento batendo na cara.

- Onde você tava? O que você tava fazendo? - Como se todos soubessem meu percurso das últimas horas. Meu melhor amigo me olhava, igualmente chapado. Desconfiava e acho que nunca havíamos estado tão distantes. A música tocando alto, aos poucos fui vendo os rostos conhecidos.

Ela já havia ido embora quando eu cheguei. Todos se divertiam muito. Muito. A cerveja gelada, a noite de verão, o reencontro daquelas caras jovens e felizes. Já eu, tão fora de si. Sem entender porque estava ali, sem responder a pergunta nenhuma.

Dançava com a menina, meu amigo me olhava, sua menina olhava ele, os olhos de lágrima. Mais algumas pessoas no fim de festa, a maioria se beijava, ou dançava os últimos minutos da música. O ambiente esvaziado, tudo meio acabado.

Gabi meio pasmada, olhava seu homem beijar a boca de outra menina. Levei ela embora, em choque, de vez em quando repetia a mesma frase incompleta "Ele e ela..."

Eu sozinho, cansado daqueles lados e daquelas dores. Acalmei minha amiga, como se acalmasse também a mim mesmo. Andávamos na madrugada vazia, bêbados e chorosos, abraçados esperando o o dia vir dizer que a noite acabara.