sábado, 3 de março de 2012

O liquidificador, a panela, o avental. Ela começou a falar com sua dentadura (a'ponte' para eufemizar os dentes postiços).

A pia vazia. Misturava água nas exatas proporções conforme ia adicionando a ábobora. No começo, achei muita água. Imaginava um caldo mais pastoso.

Ao poucos, enquanto o liquidificador interrompia seu monólogo, fui entendendo que ela fazia sopa. Por isso tanta água.

O seu filho - o único. A sua nora, com quem competia o papel de mãe.
A caçula.
E a mais velha, o norte da casa, com seus já dois filhos pequenos, marido, emprego, apartamento na zona nobre, clube, carro. 

Eram esses os personagens de sua vida solitária. Perto de seu morro, de seus passarinhos. Passava as manhãs e tardes na cozinha. Ali, entre a pia e o fogão. Cozinhava quitutes, de vez em quando embolsava uma graninha. Seu sonho era ter um choffeur.

Imaginava-se uma dessas senhoras charmosas, magras, não necessariamente bonitas, mas fumando seus cigarros sem pressa.

Acreditava, em meio a seus devaneios de destino e espiritualidade, que seu sonho viria até ela. Assim, um dia iria acordar com carro e motorista a porta. Então, sua vida estaria resolvida.
Enquanto isso, economizava suas saídas. Quando não estava comendo ou cozinhando, ouvia auto-ajuda na internet.
Ouvia. Ouvia. E, na primeira oportunidade, queria falar.


Foi assim que a encontrei naquela manhã. Apoiei meu corpo no batente da porta, enquadrei-a como em uma cena de filme. Observava seus movimentos ágeis, o modo como dominava a área. E não calava a boca.

Foi como uma tortura. Duas horas de puro horror. Resisti firme, com uma pausa para o café com pão; na varanda, a chuva caia. Minha amiga dormia. A loucura ia saindo de sua boca, inundando o apartamentinho, tão aconchegante, foi ficando encharcado. As marcas em sua pele, nos olhos um pouco maquiados, aqueles dentes expostos e sem nexo.
Ocupei o meu duplo - mesmo triplo papel - de espectadora, convidada, amiga que se constrange para enfim alcançar a educação que se deseja.