quinta-feira, 17 de julho de 2014

A menina devia ter uns dez anos e passava fio dental, olhando cada detalhe no espelho. Depois, pegou um pente e começou a pentear a franja lisa com força, deixando transparecer uma certa raiva, como se tivesse que vencer um embaraçado cabuloso. Mas o pente atravessava os fios sem dificuldade. A verdade era que seus cabelos já estavam impecavelmente penteados, assim como seus dentes, limpos.

Eu entrei no banheiro acreditando que lá encontraria uma solução para o cheiro do cigarro que havia acabado de fumar. Era uma dessas festas de casamento bregas e chiques, com caixinhas de cosméticos para as convidadas. Além do fio dental, tinha também um enxaguante bocal e um desodorante. Confesso que as moças que retocavam a maquiagem estranharam um pouco meu bochecho no meio da festa, mas nem liguei. Estava com meus pais. Eles não sabiam que eu fumava, nem era o momento para contar. Depois saí do banheiro.

A menina atravessou minha visão mais algumas vezes durante a festa. De vestidinho de bolinhas, cabelo chanelzinho, sapatinho boneca. A maioria das vezes, vagava sozinha. Só uma vez, uma mulher se dispôs a dançar com ela na pista, e pude ver sua alegria ao mexer os pés de um lado para o outro ao som de clássicos dos anos 50. Em todos os outros momentos, estava sozinha, meio perdida, meio emburrada. Sem entender o mundo dos adultos, mas também um pouco deslocada do mundo das crianças. Repare: ela queria ser criança, e o sorriso estampado quando a mulher começou a girá-la pela pista é a prova disso. Mas ela era marcada, mais marcada que as outras crianças. Por isso, a solidão.


Com a exceção dos cabelos lisos - e um vestido um pouco mais na moda - a figura vagante da menina, deslocada, e procurando no banheiro um refúgio para sua solidão, me lembrou a mim mesmo quando criança.

 Quando eu comprava chocolates com moedas catadas ou trocados que ganhava dos pais, e os comia não com um prazer de criança, mas com uma angústia adulta, com o mesmo fervor que minha mãe engolia seus antidepressivos, estimulantes, calmantes e afins, e meu pai tomava seu uísque de segunda linha contrabandeado. 

Lembro que  minha mãe me levava ao médico - eu fingia dores de cabeças diárias, para receber um pouco de atenção - e o médico escutava os barulhos da minha barriga e dizia que eu devia estar comendo rápido demais.No fim, tive que ficar um mês sem comer açúcar.

Aquele ambiente de caos, as brigas violentas, quase diárias, o descontrole, gritos e tapas,
É. Como um casamento que termina já sem paixão. Sem dor, sem desenlace. Sem briga ou emoção. Acaba, e pronto.

Não sei o que ficou na entrelinha. Achei melhor não pensar mais. Estava ficando paranóica. Pensando nas mil traições e na gravidade final de suas palavras. Em seu nervosismo -que, afinal, nada tinha a ver comigo. Era só mais uma peça derrubada daquele tabuleiro de um jogo qualquer.

Tinha medo. Da saudade e da distância. Do amor que podia ser e não foi. Do meu fracasso.
Separados por 24,5 km; separados por uma ponte. Era a distância de talvez meia cidade, e que de repente parecia pequena, ali, naquele sofá apertado, numa noite de domingo de inverno.

De tarde, andamos pela beira da represa, e eu me deixava surpreender com a vaca prenha e mansa que aparecia no caminho. Tirei fotos do bezerro e dos cavalos. Depois, os moleques empinando o pipa, a pipa, uma infestação no meio do gramado. E aí, por fim, uma estradinha de terra que parecia desembocar na paisagem de periferia, das casinhas empilhadas do jardim Apurá.

O dia passava, e a gente se entendia de algum jeito, ouvindo o som do arraiá popular, se abraçando nas músicas bregas, numa mistura entre romantismo e sarcasmo. 

Enfim, pela noite, sem conseguir nos separar, acabávamos de novo ali no longe, as casinhas já em silêncio, nós mesmos meio calados.

E então, amanhecia mais uma vez e a luz branca do mormaço entrava pela janela. De manhã, era mais fácil enxergar a favela ao lado. E voltava a atravessar a cidade, o caminho invertido, solitário.
ele falava de sua própria morte com uma racionalidade assustadora. sentava-se sempre no mesmo canto do sofá, onde alcançava a luz, os controles da TV e ainda podia olhar o relógio da cozinha. Ficava lá, e era a primeira coisa que eu via quando chegava em casa.

raramente falava ou ouvia, como que inerte pelas luzes subsequentes da TV.
não sei se era um ser amortizado, se ignorava seus pensamentos por completo ou se estava ativo, pensando na doença

era como se a doença lhe sugasse todas as energias. esses dias, segurei sua mão, antes tão quente. agora entre fria e morna, sem forças

O dia tinha sido ruim. A cabeça girava e na boca o gosto amargo da frustração. Nem mesmo seu fiel colega - mais que amigo, quase um irmão - podia lhe consolar o fracasso. Nos últimos dias, um quê de irritação tinha lhe invadido as conversas, as frases, os trejeitos. Já não era mais a mesma coisa. É como se o mundo tivesse voltado a lhe atingir de sopetão, ignorando os muitos filtros que tinha para si nesses anos de durezas.

Bebeu dois copos da cerveja e teria ficado ali até amanhã. Aqueles sorrisos falsos, aquela menina estupidamente determinada e que era quase um quadro deformado de si mesmo. 
Tinha inveja (boa, ruim?) da moça do carrinho.

Explico: na rotina atribulada da redação, do chicote do tempo e da competição estralando no lombo daqueles jornalistas, um carrinho passava de tempos em tempos com comida 'pré-fabricada', sem gosto demais ou de menos, mas suficiente para repor uma energia necessária.

Sempre empurrados por mulheres, esses carrinhos circulavam por toda a redação. Às vezes elas eram mais simpáticas, às vezes menos. De todo modo, nunca tinha muito tempo ou disposição de me lançar a qualquer conversa mais longa ou frutífera.

Só sorria, fazia um comentário de tiozão e passava no débito, enquanto bebia mais um café, comia um sanduíche sem sal ou um bolo sem açúcar.

(não é sempre, mas às vezes tenho uns arroubos de don juan, em que me sinto mais macho que muito homem desses dias de hoje. sim, acredito que as mulheres tenham uma beleza secreta. acho que eu mesma a tenho, mas ainda não encontrei)